IR. ELEOTERIA TONIN

IR. ELEOTERIA TONIN

17/10/1907 + 13/05/1993 -------------------------

Biografia

Sentindo-se chamada para a vida consagrada, expôs este apelo ao seu confessor. Não encontrando ressonância, cultivou o segredo no mais profundo do seu ser, até o dia em que, com 19 anos de idade, solicitou admissão no Instituto das Apóstolas do Coração de Jesus.

Intensa foi sua atividade como Apóstola do amor. Iniciou-a na Universidade de Bari, onde conseguiu o título de enfermeira. Em 1940, atuou no Hospital Militar Leros, no Egeo-Grecia como enfermeira e superiora, sendo testemunha de muita dor, fome, miséria e medo.

De 1948 em diante, vindo para o Brasil trabalhou com enfermeira e superiora em São Paulo,SP, Araraquara,SP, Campina,SP e Jaú,SP; nesta última comunidade, como costureira.

Em 1987, após 57 anos de doação, foi para a Betânia em Marília,SP, para um merecido descanso e para preparar, na oração e na íntima união com o Senhor, seu encontro definitivo com Aquele a quem dera sua vida.

Ir. Eleotéria, no dia 25 de agosto de 1971, recebeu do Governo Italiano, através da “Ordine della Stella della Solidarietà Italiana”, o título de “Cavaliere”, pelos serviços prestados ao próximo, em terras estrangeiras.

É bela e comovente a história da Ir. Eleotéria. Ela contava que, quando criança, gostava de conversar com um sacerdote. Após alguns anos, esse Padre tornou-se o Papa Pio X. Como religiosa, formou-se enfermeira e, no final de seus estudos, já se faziam sentir os rumores da Segunda Guerra Mundial. Enviada para a ilha do Egeo, como enfermeira no Hospital Militar, presenciou cenas e viveu momentos que jamais saíram de sua memória. Dizia ela: “Como esquecer aquela época em que ingleses e americanos bombardearam a ilha durante 52 dias seguidos? Tudo ficou arrasado. Era horrível. Ficávamos olhando para o céu desesperadas para ver em que direção os aviões seguiam para corrermos em sentido contrário, como se isso adiantasse. Quando começavam os bombardeios, rezava o terço e os oficiais italianos vinham rezar comigo”.

Isto explica o seu trauma de guerra, que a acompanhou até os últimos instantes de sua vida.

Diz Ir. Maria Casoti - Podemos imaginar que especial recompensa deve ter recebido do Coração de Jesus, a quem serviu nos irmãos sofredores, sofrendo com eles. Seu exemplo ficará gravado nos corações de quem teve a felicidade de viver em sua companhia. Para quem acreditou em Deus e o serviu durante a vida, a morte não é um caminhar para o nada; mas, sim, para os braços do Pai. Ir. Eleotéria concretizou seu encontro pessoal com o Senhor, para viver para sempre junto dele, no amor e na alegria. Colheu as alegrias provindas das lutas por que passou, na sua peregrinação terrestre. Recebeu a recompensa de uma vida totalmente consagrada ao amor, no serviço fraterno e desprendido aos irmãos, em especial aos doentes e fracos.

Depoimentos

 

Miriam Gabira - Trata-se de uma reportagem especial para o jornal de Jaú,SP, “O Comércio” de 1º de fevereiro de 1987). Nos próximos dias nossa cidade vai perder uma pessoa muito querida ligada à área da saúde. É uma italiana que está no Brasil há 30 anos, uma pessoa muito vivida, muito corajosa, com experiências marcantes. Uma enfermeira que trabalhou, inclusive, na Segunda Guerra Mundial, da qual tem recordações bastante dolorosas. Luigia Maria Tonin, que usa o nome religioso de Irmã Eleotéria [...]; viveu em sua casa com os pais e mais oito irmãos, até completar 19 anos, quanto entrou para o convento. “Minha infância foi calma. Morávamos em um bairro grande, não tão grande como uma cidade, e como naquele tempo não existia automóvel, tínhamos que andar 4h até Veneza. Tínhamos muitos amigos, frequentávamos às Missas e eu me encontrava sempre com um padre com que gostava muito de conversar. Após alguns anos, esse padre tornou-se o Papa Pio X, conta Ir. Eleotéria. Desde os 17 anos, Ir. Eleotéria já queria seguir a carreira religiosa, mesmo contra a opinião de seus pais, que preferiam vê-la casada, com filhos. “ Eu não queria casar. De que adiantaria me casar com alguém se a minha vocação era outra? “Minha sorte foi ter uma tia que apoiou minha decisão e convenceu meus pais a me deixarem ir para o convento.” Com 19 anos, Luigia Maria deixou a família e a pequena Chiampo Vicensa acompanhada de uma amiga que também queria ser freira e entrou para o convento, o Instituto Sagrado Coração de Jesus, em Alessandria, Piemonte, na alta Itália. Lembra da tristeza do dia em que deixou a família para entrar no convento. “Fazia apenas um dia que minha irmã tinha nascido. Praticamente não a conheci, porque voltei a vê-la 12 anos depois”.

No convento, Ir. Eleotéria fez seis meses de postulado, onde devia se decidir se queria mesmo seguir a carreira religiosa, e mais um ano de noviciado, até fazer seus votos. Depois seguiu para a Universidade de Bari, a “Benito Mussolini”, na baixa Itália, onde entrou para o curso de Enfermagem. “A Primeira Grande Guerra Mundial estourou quando eu tinha 10 anos e o ensino ficou paralisado durante um bom tempo. Para entrar na Universidade, tive que estudar muito, a fim de recuperar o tempo perdido. Meu curso de Enfermagem também foi puxado. Foi nesta época que aprendi bem o latim, língua que facilitou a minha comunicação com os feridos do hospital durante a Segunda Guerra, ” explica Ir. Eleotéria. O sistema da Universidade era rígido, lembra ela. As religiosas acordavam às cinco horas da manhã e tinham apenas quinze minutos para estarem prontas, na igreja, fazendo meditação, ouvindo as leituras e assistindo às missas. Depois trabalhavam no próprio hospital da Universidade que tinha 90 leitos para fazerem as aulas práticas. À tarde as Irmãs estudavam e tinham um tempo livre. Nas suas folgas Ir.Eleotéria costumava passear no Vaticano sempre que podia. Lá ficou amiga do Papa Pio XII, e conta com veneração que o Papa Pio XII era uma Santidade. Em época de dificuldades e fome no mundo, ele dormia no chão, em sacrifício. Do tempo em que estudou na Universidade, Ir. Eleotéria tem muitas recordações, mas a mais impressionante, inesquecível mesmo foi a visão que teve de seu pai. “Na Universidade nós dormíamos no alojamento com várias camas separadas por cortinas. Um dia, eu estava muito resfriada e pedi para ficar mais tempo deitada. Quando as outras Irmãs deixaram o quarto, comecei a ouvir pessoas que vinham na direção de minha cama. Então me virei de costas lembra Ir.Eleotéria. Quando os passos estavam bem próximos de mim ouvi a cortina correr, olhei rapidamente, mas ela continuava no lugar. Quando puxei a cortina vi meu pai virando de costas e indo embora. Chamei por ele e não obtive qualquer resposta. Então pressenti que ele acabara de morrer”, conta a Irmã, muito emocionada. Como eu era muito brincalhona”, prossegue Ir.Eleotéria, a Madre superiora não acreditou em mim, quando lhe contei sobre a visão. Quando a Ir. Eleotéria terminou a Universidade, as tropas já se movimentavam em preparativos para o que seria a Segunda Guerra Mundial. Certo dia ela recebeu um comunicado da Madre Superiora avisando-a de que deveria seguir para a Turquia, foi exatamente para a Ilha do Egeo, onde deveria trabalhar em um hospital militar. Sorrindo, conta como foi essa viagem para a Ilha. “A viagem para a Turquia foi uma experiência inesquecível. Fomos eu e outra Irmã, aflitas, sem sabermos o que iríamos encontrar lá. Quando chegamos, o Bispo estava nos esperando no porto e os soldados que vieram com a gente, muito brincalhões, disseram a ele que nós duas falamos tanto durante a viagem que precisaríamos descansar durante, pelo menos uma semana, ela continua rindo. Nós duas estávamos tão nervosas que não trocamos uma única palavra durante os três dias de viagem”. Na Ilha Egeo, Ir. Eleotéria presenciou muita fome, muito sofrimento, muito medo. O hospital militar onde trabalhou durante oito anos e meio tinha 1200 leitos, atendia aos oficiais italianos, alemães e ingleses. E apenas sete Irmãs cuidavam de todos os feridos. Como esquecer aquela época em que os ingleses e os americanos bombardeavam a Ilha durante 52 dias seguidos, arrasaram tudo e ela ficou tão traumatizada que toda vez que ouvia um bombardeio sentia contrações fortes no intestino. “Era horrível. A gente ficava olhando para o céu desesperada vendo em que direção os aviões seguiam para corrermos em direção contrária, como se isso adiantasse. Uma das Irmãs ficou sofrendo e morreu lá mesmo no hospital, durante um bombardeio. Não suportou, lembra ela muito triste”. Rezava sempre o terço, quando começavam os bombardeios. E os oficiais italianos vinham rezar comigo. Quando eu não estava lá, eles mandavam me chamar para rezar. Eu acabei me apegando muito a eles e quando alguém morria era muito triste. Tanto triste como quando chegavam as cartas dos campos de concentração pedindo comida, coisa que nem sempre nós tínhamos”, comenta penalizada. Ir. Eleotéria conta que no hospital só recebiam alimento quando chegava comida para os soldados, mas como as Irmãs dividiam a comida com os feridos, todos acabavam passando fome. “Quando eu ficava com muita fome eu ia ao bosque e comia tudo o que não fosse veneno. Muitas vezes comi margaridas, urtigas e outras plantas. “Foi uma experiência muito difícil”, recorda Ir. Eleotéria. Toda noite antes de dormir ela passava nos leitos dos feridos e aplicava injeções de anestesia ou calmantes neles. “Eles gritavam muito, tinham muitas queimaduras e ainda sofriam do sistema nervoso. Quase todos os que combatiam ficaram loucos. Não tinham mais nenhum controle emocional. “Eu os tratava como se fossem meus verdadeiros irmãos, que estavam combatendo na Alemanha”. Todas as vezes que havia comida, Ir. Eleotéria entrava no campo de concentração, mesmo sendo proibido e levava alguma coisa para os prisioneiros, que ficavam meses com as mãos e os pés amarrados. Comiam sem usar as mãos, como animais, colocando a boca diretamente nas vasilhas que ficavam ao seu lado. “Uma vez entrei no campo de concentração para visitar dois fugitivos, que tinham sido capturados. Eles iam comer e nem me viram. Entrei falei com eles, mas eles nem notaram a minha presença. Estavam completamente loucos”, conta a freira. Ir. Eleotéria volta a sorrir quando se lembra de uma das passagens mais engraçadas que aconteceram na Ilha. Uma história, no mínimo incomum e que, se contada por qualquer outra pessoa, poderia provocar (para não ser deselegante) desconfiança. “Um dos aviões que sobrevoava a Ilha a baixíssima altura, estava carregado com burricos (animais de pequeno porte semelhante aos nossos jumentos que eram largamente usados para transporte de mercadoria) e deve ter feito qualquer manobra mais brusca. Esses aviões nunca tinham porta e na manobra, um “burrico” despencou, caindo bem no telhado da casa onde eu morava. O curioso foi que ele não morreu na hora. “Então pedi para que um conhecido o matasse”. A carne ficou dois dias na geladeira, prossegue ainda rindo, até o dia em que o levei para o campo de concentração, para distribuí-la aos presos. Os soldados não queriam permitir, insistiram em saber onde eu havia conseguido tanta carne, mas no final consegui convencê-los. Sabe por que? Porque era Natal e teríamos três dias de trégua. Posso imaginar a festa que os presos fizeram. Outra vez, prossegue, a polícia ficou sabendo que em minha casa estava sobrando comida. Quando revistaram tudo não encontraram nada e ficaram com pena. Acabaram até mandando pacotes de macarrão para mim, comida que distribui no hospital, conta a freira. Quando a guerra terminou, Ir. Eleotéria voltou para a Itália e encontrou todos os irmãos revoltados com Hitler, que havia mandado queimar todas as casas de sua aldeia. Estavam sem emprego e com fome, mas ela ainda se considerava conformada e otimista, pois nenhum deles havia morrido, nem estava mutilado. Um dos irmãos foi trabalhar na Alemanha, dois seguiram para o Canadá e dois decidiram vir para o Brasil, pois tinham amigos aqui. Em 1948, Ir.Eleotéria e uma amiga vieram para o Brasil para trabalhar no Hospital Matarazzo, mas a amiga, também religiosa, precisou voltar porque não se sentiu bem durante a viagem de navio. Muita gente sentia-se mal quando o navio atravessava o equador. Minha companheira não se recuperou e precisou voltar, conta Ir. Eleotéria. Desde a guerra, Ir. Eleotéria já era Superiora e quando foi trabalhar em São Paulo só poderia ficar por seis anos, de acordo com a imposição da Congregação. Completaram-se os seis anos e Ir.Eleotéria era tão querida no Hospital que o Conde Matarazzo ameaçou até falar com o Papa pedindo-lhe que ele deixasse ficar. Quando saiu de São Paulo Ir.Eleotéria foi para a Santa Casa de Misericórdia de Araraquara, onde trabalhou durante três anos e depois voltou para o Hospital Matarazzo, onde ficou mais seis anos, ainda como Madre Superiora. Em 1963 ela foi trabalhar em um hospital particular em Campinas,SP onde permaneceu mais oito anos e como já começava a ficar doente (teve taquicardia, causada por trauma de guerra) pediu para deixar de ser Madre Superiora. Foi atendida e ainda ganhou um mês  de férias na Itália, descansando e revendo parentes. Em 1971, Ir. Eleotéria voltou ao Brasil e veio trabalhar em Jaú,SP, na santa Casa. Quando cheguei aqui, o edifício Novo Mundo ainda estava em construção e as pessoas eram magrinhas, parecia ter vindo da guerra. Mas fui muito bem acolhida aqui em Jaú; gostei muito da cidade, fiz muitos amigos. Na Santa Casa Ir. Eleotéria comemorou uma das datas mais importantes de sua vida as “bodas de ouro” de seu casamento com Deus, (seus 50 anos de vida religiosa) e lembra que o hospital fez uma festa linda para mim; todos festejaram comigo. Ir. Eleotéria veio para trabalhar na farmácia da Santa Casa, mas como não sabia escrever português foi encaminhada para a área de costura e lavanderia. Quando cheguei há 16 anos, a Santa Casa era bem menor do que é hoje. Naquele tempo nós lavávamos 100 quilos de roupa por dia e hoje lavamos 1200 quilos. Até os próximos dias Ir. Eleotéria continua aqui. Depois como se diz “ um pouco cansada,” vai para uma casa de descanso em Marília,SP. Gostei muito do Brasil, assim como me apeguei em Jaú. Fui muito bem recebida aqui e já decidi que quero morrer no Brasil, na casa de descanso para onde vou e onde moram 48 Irmãs.  É um lugar bonito, com muitos jardins, finaliza, Ir. Eleotéria.

 Ir. Leonilde Veronezi -  Ir.Eleotéria Tonim, Superiora na Comunidade do Hospital Matarazzo,SP. Passava pelo hospital diariamente; era amiga de todos, carinhosa sorridente. Por onde passava parece que caia um véu de paz, estimulando um bom relacionamento. Sempre muito boa. Nos anos 70 já havia influência da TV e com uma brincadeira, provocou nas Irmãs italianas um grande susto; participava das brincadeiras das Irmãs. No seu aniversário fizeram uma surpresa colocando-me dentro de um baú e fizeram-no presente para a Superiora. Foi grande a alegria que despertou a brincadeira. O entrosamento das Irmãs brasileiras e italianas era admirável. Um episódio curioso: contou-nos ir. Eleotéria que um jovem soldado ferido gravemente no combate na guerra precisou ser operado com urgência. Estando na sala operatória, houve um bombardeio que atingiu o centro cirúrgico, local onde estava sendo operado o soldado e a Ir. Eleotéria estava ajudando na sala. A bomba explodiu, desabando o teto do centro cirúrgico, caindo na cavidade abdominal aberta, em plena cirurgia. Nessa altura o médico disse a Ir. Eleotéria que não tinha mais nada a fazer. A Irmã interveio imediatamente e cheia de confiança, pediu ao médico que lavasse a cavidade abdominal, porém não havia soro fisiológico, solução normalmente utilizada para esse procedimento. Ir. Eleotéria não titubeou. Pegou água da chuva que havia recolhido e a deu ao médico para fazer a limpeza da cavidade abdominal. O médico não acreditava no êxito feliz. Entretanto fez como a Irmã lhe dissera, auxiliando-o. O médico não deu nenhuma esperança de recuperação por causa da possibilidade de infecção; mas a Imã confiou e animou-o que iria dar certo. Os dois ficaram felizes, concluíram a cirurgia e num tempo normal, surpreendentemente, a recuperação foi se processando sem nenhuma complicação. O jovem soldado saiu curado e com alta hospitalar. Foi um excelente testemunho de amor à vida ao profissional médico. Ir. Eleotéria foi muito habilidosa para conduzir à convicção o médico, que poderia ter concluído a sua atuação naquele momento drástico.

Um outro caso acontece: O relacionamento pessoal de Ir. Eleotéria era tão simples, humilde e humano que quando trabalhava na lavanderia da Santa Casa de Jaú,SP, um dos funcionários, senhor Valdeci aprendeu a trabalhar com ela; conheceu todo equipamento do local. Ele dedicava-se muito no trabalho e disse que muito aprendeu com a Irmã. Depois de algum tempo deixou a lavanderia e instalou, em Marília,SP, uma oficina para consertar equipamentos gerais. Sentindo-se tão reconhecido à Irmã e sabendo que seus restos mortais se encontram no Memorial da Betânia, fez questão de ir até o Memorial para prestar-lhe uma homenagem. Valdeci considera Ir.Eleotéria como sua mãe.